07/12/2011
O desabafo de um filho que perdeu o pai para a violência
[0] Comentários | Deixe seu comentário.Da jornalista Vilma Lúcia, do blog Ponto de Pauta, recebo cópia de carta enviada por Annamaria Jatobá, também jornalista e ex-professora do curso de Comunicação da UFRN, hoje vivendo em Salvador. A carta foi escrita pelo filho Julien, que há pouco mais de 2 meses perdeu o pai, mais uma vítima da violência em Natal. Eis a carta: A CIDADE, A ESCOLA E O HOMEM No dia 12 de setembro de 2011, o germano-brasileiro Klaus Dieter Karl ou professor Klaus, como era conhecido em Natal, morreu ao pé do muro do Hospital Onofre Lopes, vítima de um crime ainda não elucidado. Vinte anos antes, Klaus havia chegado em Natal com minha mãe, Annamaria Jatobá e comigo, na altura com dois anos de idade. Mas, por que Natal? Nos tempos de dificuldade financeira da crise da inflação e dos confiscos do Plano Collor, Klaus tentou de tudo para manter-se financeiramente. Na época era muito comum que engenheiros “virassem suco”, ou seja, que fossem trabalhar em outras áreas ou até que investissem em seus próprios negócios, como lanchonetes que serviam frutas batidas. No entanto, a primeira opção de Klaus foi viajar para a Alemanha deixando-me com minha mãe em Maceió na casa de meus avós. Permaneceu por mais de um ano em Stuttgart como uma espécie de mestre de obras, e não propriamente como engenheiro. A Alemanha, dividida, não ia tão bem financeiramente e politicamente. Quando Klaus voltou do palco da guerra fria, Anna, como chamava sua mulher, precisava terminar sua tese de mestrado e o convencera a mudar-se para Natal. O "alemão" adorou a cidade. Enquanto ela terminava de escrever a tese, os dois tentaram juntos, nos espaços das casas alugadas pelas quais passaram, abrir dois negócios: um brechó e uma escola de idiomas. Os negócios deram certo temporariamente, e puderam prover a minha educação e a subsistência de todos. Só que o engenheiro, agora professor de alemão, ainda queria provar uma de suas muitas habilidades: cozinhar e administrar um bar. Eis que surgiu o Pirata Rá-dadá na Ponta do Morcego, próximo ao Chaplin. Mas o bar não foi muito adiante e funcionou somente por cerca de um ano. De volta à realidade, o marujo naufragado assumiu de vez seu lado professor e decidiu investir novamente na escola de línguas Cultura Alemã, que mais tarde, na princesa Isabel, 335, em 1992, viria a ser o C.A. Idiomas. Contando com a ajuda do professor de inglês Maurílio Eugênio, Klaus cativou inúmeros alunos e transformou a escola em um centro de idiomas das principais línguas ensinadas no Brasil: inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. No auge da escola, em 93-94, a instituição chegou a contar com mais de 200 alunos que movimentavam e enchiam de vida o trecho final de paralelepípedos da princesa Isabel. Mas seu dono sabia muito bem que não se ensina simplesmente uma língua, mas sim, uma cultura. Foi dessa forma que promoveu encontros gastronômicos que traziam comidas típicas alemãs, participou junto com seus alunos-amigos das feiras de ciência e tecnologia na UFRN, promoveu encontros de conversação em mesas de bar regados a cerveja (os famosos Stammtisch), promoveu festivais de filme em parceria com o SESC, e organizou, contando inclusive com a minha ajuda, diversas caminhadas ecológicas no litoral do Rio Grande do Norte e da Paraíba. O professor Klaus valorizava um vida integrada em sociedade, embora permanecesse boa parte do tempo sozinho, caminhante e errante pela cidade e em sua casa/escola. Procurava difundir seus valores de integração com a natureza e ecológicos que são típicos dos alemães, embora soubesse que a cidade lhe fazia ouvidos moucos. Ele se ressentia com as transformações de Natal e com a corruptibilidade de seus líderes e do povo também, e então, respondendo a isso, construía e reconstruía eternamente a sua própria casa. Criticava muito Natal, mas a amava. Já a tinha escolhido como lugar para envelhecer. Quantas não foram as vezes que lhe perguntei e chamei para morar na Alemanha, e ele desconversou! E reclamava, “mas como é ingrata a vida de professor no Brasil”. Porém amava o que fazia. Foi dele a ideia de, ao invés de demolir o Machadão, aproveitá-lo como estrutura permanente para o Carnatal e grandes eventos. Dessa forma, a “Arena da Dunas” poderia levar desenvolvimento para outro ponto da cidade. A tão maltratada Praia do Meio era um de seus locais prediletos. Foi lá que passou a maioria de suas sentadas de bar, e era perto de lá que ficava a belíssima praia do Forte dos Reis Magos onde jogávamos bola religiosamente, pai e filho, todas as férias que vinha visitá-lo. Meu pai era um homem que não tomava conhecimento das fronteiras e transitava pelas diversas esferas sociais dos lugares que conhecia. Ele gostava de se esparramar pelo mundo e pela cidade. Passava inevitavelmente pelo submundo dali de onde bebia. Recusava-se a ser privado de sua liberdade por conta da violência. Não negava essa violência e deformação. Pelo contrário, a conhecia, a criticava, a vivia, e desfechou violentamente sua atuação neste mesmo palco em que se tornou professor, escola e cidade. Tudo junto. Julien Karl