09/03/2024
O dia de todas as mulheres
Em tempos de machismo desenfreado, de machos que se acham modernos ainda subestimando o poder das mulheres, é sempre bom ler textos assinados por homens sobre as mulheres e os novos comportamentos, como um grito de guerra contra o preconceitos, e um apelo à inclusão.
No Agora RN deste sábado, o artigo do professor da UFRN, advogado Erick Pereira.
Dia de todas as mulheres
Erick Pereira
O 8 de março, símbolo das décadas de mobilização política das mulheres contra as desigualdades de gênero, bem como de contestação e ressignificação dos seus papéis sociais, é um apelo à reflexão do quão injusto é o mundo com as mulheres.
Ao mencionar mulher ou mulheres, refiro-me ao gênero, cuja definição se vincula às construções sociais que transcendem os aspectos biológicos ou naturais. Assim, o 8 de março também pode se substanciar em um apelo ao combate aos preconceitos, à reflexão de novos comportamentos inseridos numa sociedade que preza pela dignidade da pessoa humana. Aqui, é a esse aspecto que me aterei, unindo-me a uma minoria que anda cada vez mais incomodada com os rumos das pautas ultraconservadoras.
É preocupante como as mulheres cisgêneras, cuja identidade de gênero corresponde ao seu sexo biológico, têm sido manipuladas e usadas contra as pessoas trans e suas políticas de proteção. Eis que, não tão de repente, extremistas de direita, fundamentalistas religiosos, grupos essencialistas de gênero, feministas radicais e expoentes do patriarcado, do machismo e da misoginia têm se preocupado com a segurança e proteção das crianças e mulheres cis, ao tempo em que justificam suas pautas com a imputação de fantasiosos riscos e ameaças àquela população pelas pessoas trans.
É lamentável que tal movimento, de tão expressivo e articulado, chegue ao ponto de mobilizar parcelas influentes de mulheres cis – sob o fundamento da defesa da família, infância e maternidade – para a perpetuação das velhas estruturas de controle e opressão que atuam contra si próprias. Algumas das repercussões, temos visto, incidem em abusos e violências diversas contra as vidas e os direitos das pessoas LGBTQIA+, especialmente as transfemininas.
À parte o consentimento com a rigidez de papéis e expressões de gênero, quando mulheres cisgêneras se postam contra políticas que favorecem sobretudo aquela população, esquecem-se que não se tornam apenas cúmplices da homofobia, transfobia, lesbofobia e/ou bifobia, mas se fragilizam perante patrulhas de gênero que entronizam o sexo binário estrito e imutável e seus padrões estéticos. Assim, todas perdem, não apenas as transfemininas: de mulheres cis que ousam adotar uma aparência divergente da estética cis, até aquelas que sofrem de alopécia ou cujo corte “masculino” de cabelo se deve a uma quimioterapia.
Tornar-se quem se quer ser implica a ruptura com valores, hábitos, costumes, afetos primevos. E isso requer muita coragem, pois implica em perdas descomunais. As pessoas transfemininas não são apenas desumanizadas e apreendidas como homens cisgêneros vestidos de mulher, mas são alvo de 90% das violações de direitos humanos. Uma década e meia atrás, Élisabeth Roudinesco observou que, embora hoje poucos ousem confessar-se publicamente como homofóbico ou transfóbico, o ódio contra esses seres desviantes da norma persiste, assumindo fisionomia diferente, sob forma de denegação, semelhante ao antissemitismo das sociedades democráticas atuais.
Mulheres, especialmente cis, não permitam que seus decantados traços de sensibilidade, firmeza de espírito e inteligência se voltem contra outras mulheres – de identidade, sexualidade e corpos não normativos -, negando sua humanidade e acesso à cidadania. A vida não pode dispensar o contexto e ser simploriamente dividida e limitada aos constructos frágeis e absolutos de certo e errado, normal e patológico. Vida plena exige inclusão.